“Se pudesse não ganhar nada e ganhar esse título contra o preconceito, eu trocaria todos meus títulos por igualdade em todos os lugares, todas as áreas, todas as classes”
Foi na Restinga que dona Nadir criou seus quatro filhos com o salário de faxineira. Quando pegava o ônibus de manhã cedo, pensava: “Quando será que vou parar de trabalhar?” Numa tarde de 1997, seu filho Paulo César foi encontrá-la no serviço. Tinha 19 anos, estava acompanhado de uma equipe de televisão e vinha contar de seu primeiro salário como profissional: 2,5 mil reais.
Tinga já era uma revelação do time do Grêmio, aparecendo ao grande público com um golaço contra o Sport Recife. Diante do repórter Régis Rösing, chorou ao ver a mãe limpando chão.
- Já prometi pra ela que isso aí vai mudar, e vai mesmo, disse, deixando bem claro: “trabalhar não é vergonha pra ninguém”.
A vida da família mudou rapidamente, porque Tinga logo se tornaria um jogador importante para o Grêmio, ao ponto de sua torcida reproduzir, na arquibancada do Olímpico, o grito de guerra da Estado Maior da Restinga, uma das mais populares escolas de samba de Porto Alegre:
- Tinga, teu povo te ama!
Tinga mudou a condição de vida da família rapidamente, mas há outras coisas que demoram a mudar. Num jogo de 2001, Ronaldinho fez um gol pelo Grêmio e correu para abraçar Tinga no banco de reservas: “Esse gol é pra nós, que somos da vila”, disse, num episódio não registrado mas muito conhecido em Porto Alegre. Ser da vila e, principalmente, ter a pele bem escura, ainda representam um problema.
Carregando no nome o bairro onde nasceu e seu criou, Tinga é respeitado em todos os clubes por onde passou e é ídolo de vários deles. No Internacional, afirmar que foi bicampeão da Libertadores e autor do gol do título em 2006 é, na verdade, diminuir sua importância histórica na reconstrução do clube. Jogador de fibra, presente em todos os cantos do campo, pegador e goleador, Tinga foi um dos jogadores mais importantes do Inter no período entre 2005 e 2006. No Borussia, da Alemanha, o respeito com que dirigentes, torcedores e companheiros se despediram em 2010 é a melhor prova da trajetória que construiu.
Tinga sempre foi um jogador sério, dentro e fora de campo. Um treinador do Internacional disse certa vez que Tinga puxava os companheiros pelo exemplo, dedicando-se nos treinos e nas partidas como se estivesse em início de carreira. No Cruzeiro, o técnico Marcelo de Oliveira afirmou que o jogador era referência para os mais jovens do grupo. Foi assim em todos os clubes.
Nada disso, porém, foi suficiente para mudar o preconceito, que nos estádios de futebol emerge na vazão dos sentimentos levianos que expomos quando em multidão. Tinga, que em 2005 já havia ouvido imitações de macaco quando pegava na bola no estádio Alfredo Jaconi, teve de ouvir a ofensa mais uma vez na noite de 12 de fevereiro de 2014, no Estadio de Huancayo, no Peru.
Mais de um mês depois das ofensas racistas sofridas por Tinga, do Cruzeiro, na Copa Libertadores, a Conmebol anunciou uma multa de 12.000 dólares (cerca de 27.890 reais) ao Real Garcilaso, do Peru, e uma advertência pelo episódio.
Ao final do jogo entre Cruzeiro e Real Garcilaso, uma equipe de TV pediu que Tinga comentasse o episódio. Ele tomou ar, respirou o ar da Restinga, o cheiro do colo da mãe Nadir, os golaços que fez, os títulos que conquistou, o respeito que adquiriu no futebol, todas as entrevistas ponderadas e inteligentes que deu ao longo da carreira, e disse com a serenidade e a altivez dos grandes:
- Se pudesse não ganhar nada e ganhar esse título contra o preconceito, eu trocaria todos meus títulos por igualdade em todos os lugares, todas as áreas, todas as classes.
Não precisa nos dar mais nada em troca, Tinga. Teu exemplo é o suficiente.
Fontes: impedimento e veja
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